domingo, 8 de setembro de 2013

Terceira edição do festival reúne 3 mil pessoas




Encerrou na noite deste sábado (07) a terceira edição do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, uma das maiores mostras de arte do país. Durante oito dias, além das mostras locais e nacionais, foram promovidas oficinas para formação do artista, conversas sobre o processo de montagem dos espetáculos, mesa de debate sobre o papel da crítica no teatro contemporâneo e exposição fotográfica.

Segundo Jônata Gonçalves, da organização do Festival, mais 200 representantes da classe artística, participaram diariamente da programação e 2800 pessoas assistiram às mostras nacionais no Teatro Municipal.

O intercâmbio entre os grupos é o que considero de mais significativo nesta terceira edição do Festival. O contato diário com a realidade de outros Estados, o surgimento de novos projetos entre os grupos teatrais e a nossa maneira de bem receber os artistas, foram os diferenciais apresentados por eles e que tornará o Festival melhor e maior a cada ano”, afirmou Jônata.

Para Humberto Giancristofaro, um dos críticos do festival, “a curadoria do III Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha conseguiu reunir uma diversidade de manifestações culturais nessa edição de 2013. Diferentes linguagens foram contempladas para retratar a profusão do que o Brasil oferece, de cenários modernistas paulista à estética da seca da Paraíba”.

O espetáculo que fechou a terceira edição do Festival, Como Nasce um Cabra da Peste, da Agitada Gang de João Pessoa/PB, é centrado nos preparativos e procedimentos populares para o nascimento de uma criança no sertão nordestino.

Mesmo ao transportar para o palco essas situações numa abordagem cômica, o fez de maneira comovente, humana e respeitosa para com o homem do interior e sua cultura. Através da encenação do ritual do nascimento de mais uma criança no árido e hostil mundo da pobreza nordestina, pelas mãos de uma parteira – misto de santa e médica, temida e respeitada – autor e atores resgataram da tradição oral e do esquecimento, o misticismo, a religiosidade sincrética, a luta pela sobrevivência e a doçura do homem do sertão.

Toni Cunha

O nome do festival é uma homenagem ao artista Antônio Carlos Cunha, sempre lembrado pela classe artística como um facilitador cultural de Itajaí. Foi membro fundador da Academia Itajaiense de Letras, diretor da Casa da Cultura Dide Brandão, trabalhou cerca de 10 anos na Fundação Cultural de Itajaí e foi o descobridor do poeta Bento Nascimento, entre outras ações.

Além do festival, a sala de espetáculos do Teatro Municipal também foi batizada em 2011 com o nome de Toni Cunha. Um painel, com sete metros de comprimento, com uma imagem grafitada de Toni, está fixado no hall do teatro, dando boas-vindas aos amantes da cultura e da arte.

Fotos em: http://www.flickr.com/photos/secomitajai/

Crítica: Como Nasce um Cabra da Peste

Fotos: SECOM / Itajaí
Um espetáculo carregado de cores locais e de comicidade
Crítica da peça Como nasce um cabra da peste, da Agitada Gang
por Humberto Giancristofaro, Mariana Barcelos e Dâmaris Grün

Como nasce um cabra da peste é uma peça que lança mão do imaginário do retirante para transmitir as forças que perpassam suas vidas secas. Seguindo de forma muito bem humorada o lema de que o sertanejo é antes de tudo um forte, a peça trata da cultura ao redor do fenômeno do parto numa família do interior da Paraíba. Numa curva dramática que começa com indicadores mais comuns à todos, como uma conversa sobre o formato da barriga como diagnóstico do gênero do bebe, a peça entra em características cada vez mais particulares da crença e que aos olhos do distanciamento beiram ao absurdo. Mas todas as crendices, simpatias, patuás e macumbas que formam a riqueza cultural com a qual a peça brinca são de fato um pout-pourri da cultura popular nordestina. Para compor esse texto os integrantes da companhia teatral Agitada Gang de João Pessoa, muitas vezes lançaram mão de experiências pessoais como a do jovem que guarda o sorvete na mala para apreciá-lo mais tarde. Essa abordagem regional montada pelo grupo há uma década preserva um olhar naife da sua própria região que hoje enfrenta a aculturação da globalização.

A comicidade, entretanto, não encobre a precariedade das condições de vida desses personagens. Para que o segundo filho nasça o primeiro precisa ir embora de casa, com uma trouxinha de roupa, ainda criança. A cena é a mais direta acerca do movimento cíclico da dramaturgia, que antes da chegada do bebê, já se anuncia seu futuro. O filho continua a trajetória dos pais, de andarilhos do sertão, vagando de cidade em cidade, tentado sobreviver. O cenário, composto de amontoados de gravetos, espelham as margens das estradas com árvores secas do interior nordestino. É tudo precário, escasso, sofrido, então há humor, porque este parece ser o remédio. Mas por detrás da linha cômica que mantém a encenação distante da dor dos personagens, existe um sertão real, não romantizado, nem fixado na miséria, nem na cultura local. Um olhar nada carregado de estigmas que o posicionamento crítico de quem não viveu no sertão produz. A Agitada Gang nos traz a imagem do sertão vista de dentro, o que proporciona um excelente exercício comparativo entre o que eles vêem e o que nos contam. Entre o que é e o que imaginamos ser.

É importante destacar que a companhia paraibana trabalha basicamente com teatro infantil e desenvolve como base de seu trabalho a linguagem clownesca. Mesmo que o espetáculo em questão não materialize essa linguagem de forma concreta e evidente, é possível verificarmos influências dos palhaços de cada ator ali do grupo na medida em que trazem uma representação dos tipos do sertão. O menino matuto, a mãe e o pai retirantes e caminhantes, a parteira com suas crendices estão presentes no espetáculo de forma concreta e com muita propriedade. Os atores conferem trejeitos a seus personagens que aludem ao riso constante do púbico. Eles criam tipos típicos do imaginário nordestino que não caem no rasteiro estereótipo, mas aparecem com propriedade através de trejeitos, movimentos e falas que se dão de forma orgânica na composição atorial. E fica evidente a natureza clownesca nas composições e na direção do espetáculo. A cenografia, o figurino e a trilha sonora contribuem para que o universo sertanejo e retirante se concretizem de maneira funcional, já que a simplicidade na dramaturgia quer antes apresentar a situação jocosa e quase estapafúrdia do casal retirante. Os elementos constitutivos da cena favorecem e reforçam a comicidade que a companhia encontra sobre tal assunto. Os tipos nordestinos retratados em cena e a sua lida com a realidade a eles imposta faz emergir uma comicidade crítica sim, mas nada dura.

Crítica: Luisa

Fotos: SECOM / Itajaí
Um solo acompanhado
Crítica da peça Luisa, da Cia. Experimentus Teatrais
por Dâmaris Grün

A atriz Sandra Knoll recebe os espectadores no palco do teatro da Casa de Cultura Dide Brandão como a sala de casa. O que se avista ao adentrar o palco é uma mulher de expressão triste, mas que sorri intensamente para cada espectador que ali se acolhe. Lembrança e dor serão ali expostas e partilhadas. A mulher se chama Luisa e dá nome ao espetáculo. Ela está esperando o homem amado por mais de dez anos e finalmente chega ao dia de reencontrá-lo. É a partir desse reencontro que a personagem rememora sua vida afetiva, atravessada pela lembrança forte de seu pai em contraponto ao "acerto de contas" com Augustin. O exercício da lembrança é o cerne desse trabalho e opera uma presentificação das memórias e imagens desses dois homens na vida da personagem de Daniel Veronese, autor do texto e importante dramaturgo e diretor argentino. A dramaturgia tece um emaranhado monológico cambiante entre o real encontro de Luisa com Augustin e (a partir dessa espera e reencontro) as memórias de seu pai desencadeadas nesse fluxo delirante da personagem. Essa dramaturgia faz ver em Luisa estratos de humanidade que capturam o espectador para junto da personagem numa relação cúmplice e afetiva, já que um sentimento de compaixão pela situação daquela mulher tão doída em seus afetos brota na relação entre cena e plateia.

Do solo emerge uma mulher que se encontra sozinha na vida de suas rememorações e anseios. As memórias do pai como a carteirinha e a flâmula do time de coração dele, o hino entoado em cena, a pasta de trabalho, o relógio antigo, materializam sua forte presença. Ao trazer essas relíquias afetivas e familiares ela materializa o homem ao seu lado, o pai e seu duplo, Augustin. As lembranças na cena que se referem a Augustin - na espera ou o reencontro, e isso não fica tão evidente, há uma sugestão maior do que o fato - são partilhadas com o espectador que está muito próximo da cena, próximo de Luisa, próximo da atriz. Ele, o espectador, acompanha o solo emocionado e carregado de angústias de uma mulher que antes de tudo, encontra-se só. Nem Augustin, nem o pai: sua companhia são as memórias e o espectador a sua frente.

O espaço da cena se reduz a um caixote que remete a uma caixa de luz. Esse caixote vira baú de onde a atriz retira objetos que partilha com a expectação. Há uma parede de treliça, muito pequena, que serve para apoio de longos fios elétricos que são luminárias moventes e manipuladas pela atriz. Esse espaço é completado pelas cadeiras ocupadas pelo espectador de forma próxima a ponto dele sentir-se cúmplice da ação. Essa aproximação possibilita que o sentimento de compaixão da recepção se dê no presente da ação e faça com que Luisa não esteja tão só, como suas palavras e memórias reiteram, pois a presença do aqui e agora do espectador se dá de forma viva e contundente.

Sandra Knoll representa uma Luisa entorpecida pelas lembranças e remoída pela ausência de Augustin. A atriz constrói um corpo delicado para a personagem, com gestos leves e miúdos que retificam a fragilidade da situação. O estatuto de representação nesse solo cria um distanciamento entre a atriz e a personagem de Veronese. Mas ao trazer as lembranças materiais do time de futebol do pai é evidente que se concretiza um laço afetivo em que a matéria documental, a memória pessoal da artista está ali em jogo. É ao compartilhar esse mundo pessoal - afetivo com o espectador que se cria no trabalho uma interação entre cena e expectação cúmplice e participativa, mas sem alardes. Olhar de perto documentos, fotos, livros e etc. do mundo da personagem é que possibilita ao espetáculo um caráter de solo acompanhado, pois à expectação é dado um lugar precioso no trabalho de partilha de memórias. A atuação com um registro interpretativo de representação dá a ver uma composição do personagem detalhadamente desenhado em cada traço psíquico e físico. A sutileza dessa composição faz com que se evidencie a carga pessoal da atriz no trabalho de adaptação da dramaturgia. É visível que a apropriação do mundo criado por Veronese desaguou na condição afetiva dessa atuação em cima do texto. Sem as memórias da atriz a força emotiva de Luisa não teria tanta concretude e apelo à expectação. Isso se dá de forma contundente nesse trabalho, pois na medida em que o personagem é representado pela atriz é possível verificar a carga biográfica do trabalho de atuação, principalmente ao colocar os objetos pessoais em cena, dialogar diretamente com o espectador e fazer dele seu companheiro de solo.

Crítica: Gueto Bufo

Fotos: SECOM/Itajai - Victor Schneider
O grotesco nobre
Por Mariana Barcelos
Crítica do espetáculo Gueto Bufo, da Companhia do Giro.

Com direção artística, concepção e roteiro de Daniela Carmona e encenação de Élcio Rossini, Gueto Bufo, chegou a Itajaí depois de 15 anos de estrada. O espetáculo põe em cena duas bufonas, Vênus e Filó, duas mendigas, que tal como dupla de palhaços, se complementam em suas oposições.

Expulsas de lugares públicos por apresentarem comportamento inadequado, as duas encontram num gueto próximo a uma igreja o refúgio ideal para fazer pequenas encenações do cotidiano irônico das pessoas que as rejeitam. O cristianismo, a moral burguesa e a hipocrisia social são os temas das suas brincadeiras de cena. A dramaturgia, entretanto, não é criada em torno de uma linearidade narrativa, e sim do recorte de uma condição de vida, não se conta uma história, se exibe uma situação social. As peças ligadas à comicidade, que se fixam nos recursos do humor, da ironia e do grotesco têm sua forma distanciada da dramaturgia fundamentada nesta progressão linear. Esta sensação de truncado e inacabado faz parte da criação de estranhamento que o grotesco imprime e propositalmente provoca, como se tudo estivesse fora do lugar.

E está. A vida das bufonas está fora do lugar, está à margem do aceitável, do desejado. Por isso não importa se serão espancadas ou queimadas no final. Os mendigos não interessam, são alvos de projetos de “limpeza” institucionalizados, ou de diversão de jovens inconsequentes. O humor nasce então desse sorriso amarelo que aponta para a sociedade mesma, é um movimento de reflexão a partir do desconforto. O riso que vem do grotesco é meio perdido, do não saber o que fazer, não é uma proposta de riso por conformidade com a graça, ele é desesperado, desajustado, sem alocação. O grotesco cria rupturas de sentido e gera incomodo. O bufo é um grotesco por excelência.

Seu corpo aponta exageros, deformidades e vícios num lugar quase que inaceitável, que se protege na aceitação constrangida. Vênus, que ironicamente tem os braços amputados, como a Vênus de Milo, é grande, cheia de curvas carnudas e flores penduradas em seu figurino feito de restos encontrados no lixo, mas que a deixa feminina e sensual. Filó é corcunda, feia, tem dificuldade de fala e um figurino cinza. Como um recurso de complementação de opostos, quando estão representando suas pequenas cenas o jogo se inverte, Filó é quem mais fala, usa vestido e é autoritária enquanto Vênus recebe as recomendações. É um jogo bem construído, de quem tem uma vida inteira ao lado da outra, e muitos anos de atuação juntas do palco.

O grotesco, contudo, tem origem no teatro popular, nas ruas da Idade Média. Os mesmos bufões eram conhecidos em lugares diferentes e seus atores o apresentavam ao público durante toda a vida. Mas ali, na rua, não no palco italiano. Os que mais próximo chegavam das classes altas eram os bobos da corte. O espetáculo Gueto Bufo traz ainda estas duas características importantes de serem observadas: o protagonismo do bufão no palco “nobre” unido aos anos de carreira do artista popular.

Critica: Odisseia

Fotos: SECOM/Itajai - Victor Schneider
O rosto no lugar da face
Crítica de Humberto Giancristofaro para a peça do Estúdio da Cena – São Paulo/SP

Pensemos nas articulações dos planos de imagem produzidas pela peça Odisséia. Alguns elementos especificamente dessa peça apresentam uma composição privilegiada para pensar o papel do rosto e até do close up no teatro contemporâneo. As expressões, os rostos, são usadas na peça como potência do falso. “Todos os seres vivos estão no aberto, manifestam-se e resplendem na sua aparência. Mas apenas o homem quer apropriar-se dessa abertura, apreender a sua própria aparência, o seu próprio ser manifesto. A linguagem é essa apropriação que transforma a natureza em rosto. Assim a aparência torna-se para o homem um problema, o lugar de uma luta pela verdade. [...] O rosto não coincide com a face. Por toda a parte onde qualquer coisa chega à exposição e tenta apreender o seu próprio ser exposto, por toda a parte onde um ser que aparece soçobra na aparência e a esgota, há um rosto. Assim, a arte pode dar um rosto mesmo a um objeto inanimado, a uma natureza morta. [...] E é possível hoje que toda a terra, transformada em deserto pela vontade cega dos homens se torne num único rosto”.

Odisseia segue esta construção de rostos para as cenas, mesmo as que trabalham em plano aberto, cheias de elementos, elas se compõem da junção de rostos em detrimento a uma face da história. O rosto de Odisseu estampado nos produtos, vendidos em cada esquina é o signo dessa operação que impeliu as imagens da peça para essa região do rosto onde o princípio de individuação deixa de reinar. Odisseu perde sua socialização e a comunicação com seu reino. Ele busca na sua jornada uma rostificação, uma reterritorialização do seu rosto e não suporta a desterritorialização que é feita dele, toda a liberdade e estado de fantasma, um duplo decaído de si e anseia por resgatar a ordem e estabelecer a sua medida como monarca de Ítaca. A Odisseia é um texto de descoberta do seu lugar no mundo e Odisseu combate a vida enquanto fluxo do acaso.

Odisseu trava uma batalha contra seu rosto projetado em canecas e chaveiros. Sua luta é contra isso que é desorganicizado – livre do organismo – e suplica para que o organizem. A percepção de um estado livre desses órgãos é insuportável para Odisseu, ele é um homem que só admite que os elementos se engendrem de uma forma, um rosto é um quebra-cabeça de boca, nariz e olhos para ele. Odisseu não vê a condição de captar esses elementos de outra forma, como a sensação de um rosto. “O rosto não é o seguimento exterior àquele que fala, que pensa ou que sente. A forma do significante na linguagem, as suas próprias unidades ficariam indeterminadas se o ouvinte eventual não guiasse as suas escolhas no rosto daquele que fala («olha, parece estar zangado...», «ele não pode ter dito isso...», «olha para mim quando te falo», olha-me bem...»). Uma criança, uma mulher, uma mãe de família, um homem, um pai, um chefe, um professor, um polícia não falam uma língua em geral, mas uma língua em que as tonalidades significantes estão indexadas em características específicas de rosto”.

Assim, o rosto de Odisseu não seria, meramente, um invólucro que cobre a cabeça como uma capa que faz sumir todo o suporte de determinação indexante, por aquilo que engendra uma tonalidade diferencial do que se dá como significativo na situação da cena, ou constitui-se nessa medida como a forma do significante. Nesse sentido, o rosto de Odisseu é o seu próprio espaço cartográfico de orientação de indicação que o guia, por fim, novamente até os braços de sua Penélope.

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  1. AGAMBEN, Giorgio, Moyens sans fins: notes sur la politique, trad. de Paris, Rivages, 1995, pp. 103-104) 
  2.  DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix, Mil Planaltos, Lisboa, Assírio & Alvim, p. 220

sábado, 7 de setembro de 2013

Crítica: Alevanta Boi!

Foto: Beto Bocchino
A tradição do Boi de Mamão
Crítica de Humberto Giancristofaro para a peça Alevanta Boi!

A curadoria do III Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha conseguiu reunir uma diversidade de manifestações culturais nessa edição de 2013. Diferentes linguagens foram contempladas para retratar a profusão do que o Brasil oferece, de cenários modernistas paulista à estética da seca da Paraíba.

O espetáculo Alevanta Boi!, participante da mostra local do Festival é uma demonstração das raízes da cultura do litoral catarinense. O folclore do boi é muito presente nas tradições regionais Brasil a fora, recebendo particularidades de cada lugar e sendo chamado de diferentes maneiras: boi bumba, bumba meu boi e como é denominado em Santa Catarina, boi de mamão. Os folguedos dessa manifestação cultural remontam a artesania da colonização açoriana na região. Como toda boa tradição brasileira, mistura música, dança e velhas histórias, nesse caso, ao redor da morte e ressurreição do boi. O boi pode trazer o significado de parceiro de trabalho no campo, dele depende o sustento das famílias, fazendo da sua figura algo de extremamente importante para as economias de auto-sustentação. Além dele, outros dois personagens são cativos da história: o Pai Chico e Catirina. Ela, com desejos de grávida, pede ao Pai Chico que lhe consiga a língua do boi para comer, caso contrário seu filho irá nascer com a cara “lambida”. O coronel aparece como dono do boi e, sem saber o que aconteceu com ele, chama um pajé para voltá-lo à vida. O ciclo se fecha quando o pajé diagnostica que apenas os encantamentos de uma grávida alcançam tal intento. Catirina é então responsável pela morte e pela ressurreição do Boi.

A linguagem utilizada para a concepção dessa peça foge, porém, de um modelo clássico de folguedos de rua. Procurando se aproximar um pouco mais dos recursos contemporâneos, ela lança mão de um boneco narrador que conduz a carruagem. Isto lembra consideravelmente a forma como os programas infantis de televisão são apresentados e dá um charme à peça que ajuda a manter a atenção dos espectadores na história. Esse narrador estabelece um laço interno com o drama, uma vez que se apresenta como o filho de Catirina. Ele é considerado também irmão do Boi, pois foi a chama da sua vida que alimentou a ressurreição do bicho. Ambos seguem conectados até que a morte os separe. Outra forma de jogar com o folclórico e o moderno se apresenta na figura do pajé, caracterizado como um índio apache típico dos filmes de wester americano. Dessa forma o apelo aos poderes xâmanicos do índio aparentam ficar mais expressivos para as crianças, ao invés de um índio “comum”, igual ao que elas veem pelas ruas. E ao fim da apresentação, que é toda feita em um carro de boi, o bonequeiro assume o miolo do boi e termina dançando bumba meu boi.

Crítica: A Cortina da Babá

Fotos: SECOM/Itajaí - Victor Schneider
Uma dramaturgia atrás do efeito lúdico
Por Mariana Barcelos
Crítica de A Cortina da Babá, do Grupo Sobrevento

A curadoria do III Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha teve um olhar generoso para o Teatro de Bonecos. Boa parte da programação é dedicada ao gênero, que se divide em diversas linguagens, no Festival, por exemplo, pode ser visto desde os bonequinhos dos Lambe-Lambes, passando pelos bonecos com influência folclórica, que narraram a história do Boi-Bumbá, até a forma de manipulação Tangshan, tradicional no teatro de sombras chinês. Esta última foi apresentada no espetáculo A Cortina da Babá, objeto desta crítica.

O espetáculo tem sua encenação baseada no texto Nurse Lugton’s Curtain, de Virginia Woolf, no qual um babá dorme enquanto está costurando uma cortina bordada com animais e alguns elementos de uma aldeia, como uma ponte, e algumas árvores. O cenário de André Cortez é divido em duas estruturas de um mesmo quarto de criança, no lado maior está o menino, dono do quarto, na outra parte do tablado construído e colocado em cima do palco está a babá numa cadeira, segurando uma enorme cortina, embaixo de uma luminária. A divisão do quarto define o antagonismo dos personagens, que durante a primeira e última parte da peça se relacionam mais diretamente. O menino tem medo da babá, e a mesma se expõe de maneira rígida e controladora. Na primeira cena, um diálogo com sombras é proposto, com um brinquedo em forma de cabeça de dinossauro o menino simula morder a babá, logo depois, como resposta, usando a luz a luminária, a babá que parece engolir o menino. Cria-se assim os signos que definem esta relação, e anuncia-se o princípio de dramaturgia.

Contudo, após a cochilada da babá aparentemente a história é interrompida. O menino então passa a se divertir com sombras na parede, e mais adiante, numa espécie de delírio, vê os animais e figuras bordadas na cortina, contando pequenas narrativas na parede do seu quarto. Narrativas simples, um avestruz que põe um ovo vazio, uma árvore que perde as folhas, um balão amarrado na ponte que a leva para o céu. A manipulação dos bonecos ganha vida por detrás da parede iluminada por Renato Machado. A iluminação é indispensável no espetáculo por motivos óbvios, mas aqui ela vai além, quando nas cenas entre o menino e a babá é a luz que funciona como fala, já que estas não existem. É a luz que dá a densidade da relação entre as personagens e pontua as transições de ânimo tanto nos bonecos, quando nos atores. A iluminação é o elemento técnico que continua a propor uma dramaturgia mesmo quando a linha da continuidade narrativa é interrompida a favor da exibição da técnica.

O Grupo Sobrevento foi fundado em 1986, no Rio de Janeiro, por Luiz André Cherubini, Sandra Vargas e Miguel Vellinho. Em seu repertório figuram dramaturgos importantes como Beckett e Alfred Jarry, e, criações como em Mozart Moments, composta por alguns recortes da biografia de Mozart e ainda O Copo de Leite, destinado ao público jovem e que trata da transição da infância para a adolescência com todas as subjetividades e dificuldade presentes neste momento. São apenas alguns exemplos da complexidade dramatúrgica que o Teatro de Bonecos detém, porque, afinal de contas, é de Boneco, mas é Teatro. Não é hierarquicamente inferior a nenhuma outra forma de criação teatral.

Por escolha, ou não, já que não posso afirmar isto, A cortina da babá não apresenta na dramaturgia um desdobramento sobre a ação. Apesar da inspiração no texto de Virgina Woolf, a história que se exibe parece existir mais como pretexto para o teatro de sombras do que como componente mesmo da obra. Os momentos são independentes, a relação do menino e da babá é uma passagem, que somada dura pouco, e a maior parte da encenação é a exibição da técnica na parede do quarto. O que amarra uma parte a outra é uma linha de costura muito tênue e sutil, que se utiliza da repetição das figuras da cortina. Por isso, os momentos que os dois atores estão em cena têm mais profundidade cênica, mais tensão, mais força, e geram um interesse pelo o que pode se desdobrar dali em diante, ao contrário das sombras, que tem sua graça reduzida a forma em si, a girafa controla o pescoço e é isto. O tempo para o desenvolvimento da relação babá-criança fica encolhido.

O espetáculo, entretanto, tem um foco claro no público infantil. E não há questões quanto à importância de possibilitar este encontro com o teatro de animação, técnicas chinesas, bonecos, com a própria Virgínia Woolf e com o Sobrevento, um Grupo com reconhecimento consolidado dentro e fora do país e que tem um trabalho dedicado às crianças. Um privilégio.