terça-feira, 3 de setembro de 2013

Crítica: Cabeça de Vento

Foto: SECOM/Itajaí - Victor Schneider
A parte calma da infância
Crítica do espetáculo Cabeça de Vento, da Pandorga Companhia de Teatro
Por Mariana Barcelos

Há um quê de repetição nos espetáculos infantis. Muitas cores, muitos sons ilustrativos, muitas caretas, muitas vozes artificiais, muita correria. Fica a impressão de que pensar na recepção da criança é sempre correr atrás da sua concentração a todo custo, não importa o que se conta. Com algumas exceções, as representações das fábulas pecam por um didatismo exagerado, que acabam por recair no clichê do “estar subestimando a inteligência das crianças”. Este é um problema que Cabeça de Vento, com texto e direção de Cleiton Echeveste, não apresenta.

Foto: SECOM/Itajaí - Victor Schneider
O espetáculo se mostra aos poucos, em princípio o registro de interpretação mais próximo do natural, vozes sem grito, sem grandes articulações, sem falseamentos e o corpo sem movimentos irreais causam algum e estranhamento: “É realmente infantil?” Perguntavam algumas pessoas na plateia. O fato é que um pai, uma mãe e um menino que ama soltar pipas se refere intrinsicamente ao universo da criança. A rachadura de sentido se abre neste exato momento quando o imaginário é infantil, mas a representação não é, ou nem tanto. O questionamento que a peça propõe sobre a parte técnica do teatro é: existe mesmo uma forma de interpretação só para um público-criança? Alguém disse isso? Eu, particularmente, conheço pouco a literatura teórica sobre teatro infantil, então, não sei se este ponto que levanto já é uma discussão fluente entre os grupos e pessoas que trabalham com este teatro. Como espetadora, estudante, e professora de teatro para crianças, eu penso que a multiplicidade de linguagens do teatro feito para eles mesmos não é só um ganho do ponto de vista técnico, mas uma maneira de demonstrar respeito a um público que também deve ser visto em sua heterogeneidade. Quando os espetáculos infantis são repetidos dá a impressão de que as crianças são também.

Pois bem, o espetáculo começa com a apresentação dessa estrutura familiar (pai – Eduardo Almeida, mãe – Tatiana Henrique, e filho – Jan Macedo) tendo uma vida comum, até que um dia um acontecimento também comum coloca a vida de Leonardo e sua mãe num período de transição, assimilação e aprendizado: o pai morre. Não é um drama, um horror, uma fatalidade, é algo que ocorre a todos, ou quase, mas é comum, normal, e pode ser tranquilo. Mais uma vez o espetáculo ganha na não obviedade do tema, na maneira de se colocar para seu público com generosidade diante de um assunto difícil, porém sem desacreditar na capacidade de apreensão dos meninos. Leonardo tem 8 anos e sente dificuldade de compreender o momento, como a mãe perplexa que sem saber como tratar e o que dizer dá a Leo um livro de presente, um almanaque sobre figuras históricas, para que ele se distraia.

Com isto o espetáculo adquire uma atmosfera serena, calma, tranquila, uma espécie de suspensão comum a períodos em que a vida passa por transformações importantes. A direção e as opções técnicas da montagem dão a sensação de que Leo tem todo o tempo do mundo para viver este processo. A trilha sonora de Gustavo Finkler tem uma qualidade relaxante, mansa, um pouco lenta, e tem uma presença forte durante toda a encenação. Ela permite quebras reflexivas entre uma fala e outra, o que contribui para o efeito de um ritmo lento de espetáculo. Eu poderia pensar que talvez isso fosse um ponto de se estudar melhor a execução, mas me recordo de uma ida recente ao teatro, em que o espetáculo era muito poético e também me deixou uma percepção de lentidão. No final, uma espectadora me disse: “Muito bonito, né? Tranquilo. A gente não está mais acostumado com isso. Estou tão calma.” Na verdade, minha intenção é dizer que talvez o ritmo seja uma questão de costume. Neste caso, claro, em que a encenação se apresenta da mesma forma do início ao fim.

A iluminação de Tiago Montovani é igualmente recurso para este estado contemplativo. Ao deixar prevalecer tons frios e discretos os véus brancos da cenografia de Daniele Geammal, que ficam em paralelos na rotunda, ficam tingidos em degrades oníricos, fantasiosos, que contribuem para uma apreensão mais sinestésica da obra. As crianças menores, que podem não ouvir o texto com muita clareza de sentido, têm como experenciar um encontro mais estético com o espetáculo. O cenário é composto ainda por modulares com bases retangulares nos quais muitas varas de bambus estão encaixadas, a movimentação é intensa desses modulares durante a peça, muitos formatos são propostos durante as cenas. Quando assisti, não consegui captar uma lógica naquela utilização, apenas fiz os links óbvios do bambu com a pipa e com a personagem oriental que falarei mais adiante. Contudo, ontem durante uma conversa com o grupo, foi dito que os modulares foram construídos com a ideia de montagem, como um jogo de Lego, com possibilidades infinitas. Esta parte minha idade não permitiu enxergar.

Foto: SECOM/Itajaí - Victor Schneider
Então Leo ganha o livro e vai passear. No meio do caminho acontecem coisas incríveis, alguns personagens do almanaque aparecem e conversam com o menino. Benjamin Franklin, Fu Hao e Ricardo Coração de Leão têm em suas histórias ligações com pipas, é daí que parte a justificativa dramatúrgica, mas para o menino ficam os aprendizados de coragem e a sabedoria de esperar o tempo passar. O encontro com essas figuras traz o elemento fantástico e ao mesmo tempo didático do teatro infantil. É atraente a utilização dos sotaques que estes personagens trazem, assim como algumas falas ditas em outras línguas, sem a menor intenção de explicação ou tradução do que se está sendo falado. A criança tem autonomia como espectador de assistir conforme suas possibilidades, não tem ninguém a obrigando o entendimento. É assim que se forma um espectador não passivo.

Espetáculos infantis vêm com a propaganda de ser “para toda a família”. Claro, não há nada impróprio para um adulto nessas peças, e é preciso de acompanhantes, no fundo, é isso. Mas vamos pensar mais além em Cabeça de Vento, o espetáculo alarga as fronteiras do que pode ser um infantil; e fala de um tema que nós, ocidentais, ainda estamos longe de ter um encontro saudável; ainda propõe para a infância um lugar menos elétrico, enfim, são muitos os interesses. E principalmente, ver a inocência afastada da cegueira é uma necessidade, é uma alegria.

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